OS GOVERNOS FHC E LULA E O REGIME DE PROPRIEDADE INTELECTUAL

 

AS POLÍTICAS EXTERNAS DOS GOVERNOS FHC E LULA E

O REGIME INTERNACIONAL DE PROPRIEDADE INTELECTUAL:

DA SUBORDINAÇÃO AO TRIPS À “AGENDA DO DESENVOLVIMENTO”

Carlos Maurício Ardissone[1]

 

Resumo: O trabalho se propõe a analisar a trajetória do padrão de inserção do Brasil no regime internacional de propriedade intelectual desde o Governo Fernando Henrique Cardoso – FHC (1995-2002) até o Governo Lula (2003-2008). Pretende-se demonstrar que de um padrão essencialmente subordinado, característico da política externa do primeiro mandato do Governo FHC, em que o mais importante era apenas aderir aos regimes internacionais, a inserção brasileira assumiu, no Governo Lula, um perfil mais engajado em face de determinadas características excludentes dos princípios, regras, normas e procedimentos de tomada de decisão que regem o atual regime internacional de propriedade intelectual. A proposta de uma “Agenda do Desenvolvimento” no âmbito da OMPI representa a face mais acabada desta postura na política externa do atual governo.

Palavras-chave: Regimes Internacionais – Propriedade Intelectual – Política Externa – Inserção.

 

 

A regulação internacional da propriedade intelectual[2] representa área de interesse estratégico nas diversas negociações multilaterais que envolvem atores estatais e não-estatais. Desde a finalização da Rodada Uruguai do GATT, a criação da Organização Mundial de Comércio (OMC) e o advento do Acordo TRIPS[3], em 1995, analistas internacionais têm procurado desvelar as conseqüências da vinculação do tema “propriedade intelectual” ao “comércio internacional” para a inserção dos países em desenvolvimento na economia internacional. De acordo com a abordagem de alguns analistas em propriedade intelectual e economia política internacional como Susan Sell, Carlos Correa, Ha-Joon Chang e Marisa Gandelman, o advento do Acordo TRIPS contribuiu para diminuir de forma representativa as margens de manobra dos países em desenvolvimento no acesso ao conhecimento e às novas tecnologias no plano internacional. A rigidez do novo regime impõe, assim, barreiras políticas e técnicas para que países em desenvolvimento possam investir em novas tecnologias, em inovação e em políticas públicas desenvolvimentistas de proteção dos seus ativos intangíveis nacionais, sem serem acusados de pirataria e de outros delitos internacionais contra o patrimônio intelectual dos países mais desenvolvidos. Diante de tal quadro, cabe refletir sobre as reais possibilidades de uma inserção positiva de países em desenvolvimento como o Brasil neste cenário, de forma a permitir, especialmente aos empresários nacionais, acesso ao conhecimento e maior proteção de seu patrimônio imaterial, especialmente marcas e patentes, dois dos principais indicadores de desenvolvimento e competitividade das economias nacionais na ordem mundial.

Assim, a proposta da pesquisa contida neste artigo é analisar a o padrão de inserção do Brasil no regime internacional de propriedade intelectual durante o Governo Lula. Como tem se verificado esta trajetória? É possível identificar diferenças no padrão de inserção do atual governo no regime internacional de propriedade intelectual, comparado ao governo anterior? Quais diferenças seriam essas?

Pretendemos demonstrar que a trajetória do padrão de inserção do Brasil no regime internacional de propriedade intelectual sofreu modificações do Governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) para o Governo Lula. De um padrão de inserção subordinado, característico do primeiro mandato de FHC (1995-1998), em que o mais importante era apenas aderir aos regimes internacionais existentes e aos novos regimes propostos (como o de propriedade intelectual), a inserção brasileira gradualmente assumiu um perfil mais crítico e descontente com os rumos da globalização econômica até se revestir de uma postura engajada no Governo Lula. Atitudes de descontentamento e inconformidade com os contornos do regime internacional de propriedade intelectual começaram a se delinear no segundo mandato de FHC (1999-2002), durante a Gestão do Ministro José Serra no Ministério da Saúde, ocasião em que se deu o embate diplomático do governo brasileiro e de governos de outros países em desenvolvimento, como o da África do Sul, com as indústrias farmacêuticas transnacionais, apoiadas pelo Governo dos Estados Unidos, no intuito de garantir acesso gratuito de populações carentes ao coquetel de medicamentos contra a AIDS, o que, a princípio, violaria os direitos de propriedade daquelas empresas sobre suas patentes.

Contudo, a política externa brasileira de propriedade intelectual só ganhou contornos mais definitivos de afirmação e engajamento durante o Governo Lula. Sob uma ótica retrospectiva, pode-se afirmar que, no primeiro mandato do Governo FHC, o que mais importava era a mera adesão aos regimes como forma de garantir credibilidade para a política externa e para a inserção internacional do Brasil. Trata-se do que se convencionou chamar na literatura especializada de princípio de “autonomia pela participação”. A partir do segundo mandato de FHC, o otimismo generalizado em torno da construção de uma ordem econômica mundial neoliberal foi sendo substancialmente minado, dando lugar, no Governo Lula, a uma nova vertente na condução da política externa, mais afirmativa e autônoma e com estratégias mais engajadas e diversificadas de inserção internacional, como a “Agenda do Desenvolvimento” proposta por Brasil e Argentina no âmbito da OMPI, em 2004.

O artigo está divido em mais quatro partes, além desta Introdução. Em primeiro lugar, apresentamos breves considerações sobre a literatura de regimes internacionais. Sem ignorar o mérito e as possibilidades de abordagens mais contemporâneas e alternativas, concentramo-nos nas duas maiores tradições teóricas das Relações Internacionais: o institucionalismo neoliberal e o (neo)realismo. Os limites de espaço e os propósitos do artigo não nos permitiram uma prospecção teórica mais profunda, embora reconheçamos que abordagens alternativas como o construtivismo, o pós-modernismo, o pós-colonialismo e o feminismo podem trazer contribuições analíticas valiosas ao estudo dos regimes internacionais.Em seguida, examinamos o regime internacional de propriedade intelectual surgido após o Acordo TRIPS e seus contornos excludentes para os países em desenvolvimento. Sublinhamos as razões pelas quais o conflito diplomático entre o Brasil e os Estados Unidos em torno do programa brasileiro de distribuição dos medicamentos contra o HIV/AIDS, ocorrido entre 1997 e 2001, pode ser considerado um momento importante na forma como o Brasil passou a conduzir sua inserção no regime internacional de propriedade intelectual. Após, apresentamos as diretrizes básicas da política externa brasileira do Governo Lula, com ênfase na área temática da propriedade intelectual e no lançamento da “Agenda do Desenvolvimento”. Ao final, apresentamos considerações que podem auxiliar novas pesquisas sobre a inserção brasileira no regime internacional de propriedade intelectual.

 

A LITERATURA DE REGIMES INTERNACIONAIS

 

A partir dos trabalhos de Robert Keohane e Joseph Nye sobre interdependência complexa na década de 70[4] e a publicação do volume International Regimes, de 1983, organizado por Stephen Krasner, “[…] as formas institucionais de cooperação internacional e os processos políticos, sociais e econômicos que lhes são vinculados se estabeleceram como objeto central de pesquisa no estudo das Relações Internacionais” (CASTRO, 2001, p. 25). O debate entre institucionalistas neoliberais e neorealistas nas décadas de 80 e 90 estimulou adeptos de ambas correntes a se engajar numa discussão sobre o papel desempenhado pelos regimes internacionais no sistema internacional (LITTLE, 2005, p. 369).

Durante a década de 80 e início dos anos 90, os regimes internacionais tornaram-se objeto constante de análise das abordagens teóricas mais tradicionais das Relações Internacionais – o (neo)realismo e o institucionalismo (neo)liberal, Ambas compartilharam algumas presunções mas, ao mesmo tempo, sustentaram postulados concorrentes sobre os regimes internacionais. Assim, muito mais acertado admitir a existência dos regimes enquanto um conjunto de categorias ou percepções válidas, passíveis de utilização como ferramentas analíticas por diferentes teorias, do que como “uma teoria” em si. Tomando como referência o comentário de Chris Brown de que “[…] As Relações Internacionais não é o tipo de disciplina acadêmica onde devemos esperar ou acolher consenso e a ausência de abordagens concorrentes sobre o mundo” (BROWN, 1997, p. 14), injusto seria esperar mais da literatura de regimes.

Mas, afinal, os regimes internacionais existem de fato? E se existem, como conceituá-los? O conceito mais celebrado, sem dúvida, é o de KRASNER (1983. p. 2)[5]:

 

Os regimes são definidos como um conjunto de princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisão, implícitos ou explícitos, ao redor dos quais as expectativas dos atores convergem em uma dada área das relações internacionais. Os princípios são crenças sobre fatos, causalidades e retitude. As normas são padrões de comportamento definidos em termos de direitos e obrigações. As regras são prescrições ou proscrições específicas para a ação. Os procedimentos de tomada de decisão são práticas para formular e implementar a ação coletiva.

 

Pairam muitas dúvidas na literatura sobre o conceito mais preciso de regime internacional. KEOHANE (1989) sugeriu superar a definição de Krasner a fim de substituí-la por uma formulação de mais fácil apreensão e que fosse menos propensa a interpretações divergentes.[6] Desta forma, sua proposta é a de definir regimes como “[…] instituições com regras explícitas, acordadas pelos governos, que pertencem a um conjunto particular de questões nas relações internacionais” (1989, p. 4). Keohane procura desmontar o complexo aparato de Krasner formado por princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisão, reduzindo-o à condição de “regras”. Apesar do ganho pragmático do movimento de KEOHANE por eximir os estudiosos da necessidade de justificar porque se referir a uma ou outra injunção como “norma” ou “regra”, o fato é sua definição desencorajou esforços para compreender as relações mútuas entre os quatro elementos da definição.[7] Além disso, a hierarquia estabelecida por Krasner (princípios acima de normas, regras e procedimentos; normas acima de regras e procedimentos e regras acima de procedimentos) permitiu, entre outras coisas, que KRASNER conseguisse diferenciar dois tipos de mudança nos regimes internacionais: as mudanças de regimes (nos princípios e/ou nas normas) e as mudanças dentro dos regimes (nas regras e/ou nos procedimentos de tomada de decisão).

Sobre o diálogo entre as duas abordagens teóricas mais tradicionais no estudo dos regimes internacionais, o (neo) realismo e o institucionalismo (neo)liberal, é praticamente impossível não fazer uma remissão ao papel desempenhado por Robert Keohane em meios aos estudos que marcaram o debate neorealismo x neoliberalismo nas décadas de 80 e 90.  Depois do forte contra-ataque do neorealismo ao pluralismo no final da década, por meio das formulações de Kenneth Waltz, Keohane procurou assumir algumas de suas premissas[8], sem se descuidar de seu componente liberal, ou seja, mantendo intacto o interesse na análise das instituições internacionais (modalidades de cooperação internacional formais e informais) e sustentando-se na premissa de que a cooperação é possível e que as instituições “[…] modificam a percepção que os Estados têm de seus próprios interesses, possibilitando assim a cooperação (que os realistas/neoealistas vêem só como um fenômeno conjuntural)” (SALOMÓN, 2002, p. 13).

O tema principal que demarcou o diálogo entre o neorealismo e o neoliberalismo, sem dúvida, girou em torno dos efeitos que as instituições internacionais podem exercer sobre o comportamento dos Estados em uma situação de anarquia internacional (SMITH, 1997. p. 170, apud SALOMÓN, 2002. p.15). Procurava-se refletir sobre as possibilidades das instituições internacionais compensarem ou não os efeitos da anarquia. Os neoliberais sustentaram que sim, ao passo que os neorealistas responderam negativamente (SALOMÓN, 2002, p. 15).

A importância dos embates e discussões travados entre neorealistas e neoliberais a partir dos anos 80 reside na constatação de que, devido ao processo dialético que caracterizou o rico programa de investigação desenvolvido, cada uma das partes pôde refinar progressivamente suas posições iniciais. Mônica Salomón afirma que o conceito de regime internacional poderia ser considerado, sem exagero, quase que exclusivamente um produto do diálogo entre neorealismo e neoliberalismo. Neoliberais e neorealistas passaram a debater casos concretos de criação e manutenção de regimes internacionais, os primeiros concebendo os regimes como produto da maximização de interesses de seus participantes, os últimos como produto das relações de poder e explicados ou pela presença de uma potência hegemônica ou de determinadas configurações de poder (SALOMÓN, 2002. pp. 18-19).

Com o aprofundamento do dialogo neorealismo x neoliberalismo e a progressão e o desenvolvimento da literatura e dos programas de estudo sobre regimes já era possível identificar, no início da década de 80, pelo menos três tipos de visões ou de escolas de pensamento sobre os regimes internacionais. De acordo com KRASNER (1983)[9], seriam três as escolas de pensamento que estudam os regimes internacionais: os estruturalistas “convencionais”, os estruturalistas “modificados” e os “grocianos”.

Os estruturalistas “convencionais” seriam aqueles que negam qualquer papel relevante aos regimes internacionais. Não acreditam que as instituições sejam importantes e relegam a um segundo plano (ou rejeitam) os aspectos normativos do sistema internacional. Entre seus principais adeptos, podemos mencionar Susan Strange. Para a autora, os regimes distorceriam a realidade por dar ênfase demasiada ao “estático” e “sub-dimensionar” os elementos dinâmicos da mudança na política mundial.[10] Eles ignorariam uma vasta área de “não-regimes”, ou seja, os regimes valorizariam excessivamente os aspectos positivos da cooperação internacional e subestimariam os negativos. Desta forma, os regimes obscureceriam os aspectos da economia internacional nos quais os regimes não existem. Na realidade, haveria mais questões de discórdia e controvérsia do que áreas de consenso (STRANGE,1983. pp. 337-350).

Robert Gilpin é outro autor que critica radicalmente os adeptos da perspectiva dos regimes internacionais, especialmente os integrantes da tradição do institucionalismo neoliberal. Para o autor, existem obstáculos formidáveis para alcançar a noção de uma economia internacional baseada em regimes. Além disso, crê que existiriam poucos princípios gerais ou prescrições políticas sobre os quais eles poderiam ser construídos (GILPIN 2003, p. 241). O autor não descarta a necessidade de regime com a participação de atores transnacionais, mas defende que é basicamente a partir das relações de cooperação entre os Estados mais fortes que se pode constituir uma base política para uma economia estável e unificada (GILPIN, 2004, p. 26).

Os estruturalistas “modificados” são os que sustentam que os regimes podem ter um impacto significativo, mesmo numa ordem anárquica. Aceitam inicialmente a perspectiva neorealista de um mundo de Estados soberanos insertos num ambiente anárquico e que buscam maximizar seus interesses e poder. Contudo, crêem que os regimes exercem um papel importante no cenário internacional. Acreditam que os Estados são atores racionais e que a cooperação internacional não só é possível, como necessária em determinados momentos, para mediar conflitos (CEPALUNI, 2005. p. 61). Entres seus representantes mais importantes estaria KEOHANE (1983, 1989) que frisa que os regimes podem ter impacto quando resultados ótimo-paretais[11] não puderem ser alcançados através de cálculos individuais não coordenados de auto-interesse (KRASNER, 1983, p. 7).

Já os “grocianos” são descritos por Krasner como os que enxergam os regimes como um fenômeno recorrente de todos os sistemas políticos. Os grocianos entendem que os homens de Estado sempre perceberam a si mesmos como que constrangidos por princípios, normas e regras que prescrevem e proscrevem diferentes comportamentos. Para os adeptos desta corrente, o conceito de regime vai muito além da visão realista que seria muito limitada na sua capacidade de explicar um mundo crescentemente complexo (1983, p. 8). PUCHALA & HOPKINS (1983) e YOUNG (1983) seriam adeptos da perspectiva grociana. 

Tendo em vista esta tradicional tipologia estabelecida por Krasner, articulamos agora tal aparato teórico com o atual regime internacional de propriedade intelectual. Qual a abordagem teórica mais adequada para analisar este regime na atualidade? Em outras palavras, qual a leitura mais adequada a se realizar do regime internacional de propriedade intelectual, dentro do campo teórico das relações internacionais?

 

O REGIME DE PROPRIEDADE INTELECTUAL DO ACORDO TRIPS

 

Marisa Gandelman é uma autora nacional que apresenta avanços consideráveis no estudo dos princípios, normas, regras e procedimentos que formam o regime internacional da propriedade intelectual. Sua perspectiva se aproxima da perspectiva realista por estar baseada no poder, mas o poder compreendido não só dentro do marco clássico de emprego da força material, mas também como poder sobre o conhecimento. A autora utiliza-se do papel desempenhado pelas idéias como variáveis causais e normativas. Igualmente, utiliza-se da abordagem das dinâmicas econômicas estruturais da teoria crítica de Robert Cox para contextualizar as mudanças que teriam ocorrido no regime internacional da propriedade intelectual (GANDELMAN, 2004).

De forma geral, o que a autora faz é relacionar o debate sobre a produção e o acesso ao conhecimento com a disciplina das Relações Internacionais através do estudo da teoria de regimes e, particularmente, do regime internacional da propriedade intelectual. GANDELMAN demonstra que a propriedade intelectual tem como base um amplo sistema de proteção jurídica, adotado de forma quase homogênea por um grande número de países – atualmente todos os membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) -, e que tem por objeto a propriedade de bens imateriais, mais especificamente o conhecimento produzido e acumulado pelo homem, bem como a tecnologia desenvolvida como resultado do conhecimento acumulado. As idéias e as crenças dos atores que formam o sistema internacional a respeito de como tratar o conhecimento e os avanços tecnológicos – e sua importância nas relações econômicas e políticas internacionais – é que teriam dado origem a um conjunto de princípios, normas, regras e procedimentos que constituiriam o regime internacional da propriedade intelectual (GANDELMAN, 2004, p. 19). O regime internacional da propriedade intelectual é definido assim como o regime:

 

[…] constituído por princípios, normas, regras e procedimentos que têm por objeto um direito de propriedade sobre bens imateriais, mais especificamente sobre o conhecimento produzido e acumulado pelo homem, bem como a tecnologia resultado do conhecimento acumulado.(GANDELMAN, 2004, p. 55).

 

A autora demonstra que os princípios em torno dos quais os interesses convergiram no momento da formação do regime, no final do século XIX, fundamentam-se numa idéia central: a de que a proteção ao fruto do trabalho intelectual estimula a criatividade e os investimentos em produção de conhecimento, além de possibilitar um maior intercâmbio entre as partes envolvidas. Desta forma, o modo encontrado para proteger efetivamente os bens intelectuais intangíveis foi transformá-los em bens apropriáveis, isto é, em mercadorias que podem ser comercializadas no contexto internacional. Toda a trajetória histórica do regime internacional de propriedade intelectual teve como traço característico o de que os seus elementos (princípios, normas, regras e procedimentos) foram estruturados a partir do conceito político e jurídico de propriedade. O regime teria sofrido algumas mudanças desde a sua formação no final do século XIX[12], mas todas elas sempre pautadas no conceito, na instituição e – o mais importante – na ampliação da propriedade privada sobre os bens imateriais gerados pela invenção intelectual. (GANDELMAN, 2004, pp. 18-19).

Em resumo, todas as mudanças no regime internacional de propriedade intelectual – especialmente a que ocorreu após a Rodada Uruguai, assinatura do Acordo TRIPS e criação da OMC -, teriam sido operadas pelos Estados com mais recursos de poder (em particular os Estados Unidos) – sendo o poder entendido pela autora como monopólio sobre o conhecimento e a tecnologia – aliados a outros atores (poderosas corporações multinacionais no setor farmacêutico, de informática, etc), no sentido de ampliar o escopo de aplicação do conceito de propriedade. A distribuição de poder que modelaria a dinâmica dos relacionamentos em torno da produção e do acesso ao conhecimento não teria se alterado profundamente: aos Estados em desenvolvimento lhes continuaria sendo dificultado ao máximo tal acesso. 

A análise desenvolvida por Marisa Gandelman é crível e persuasiva. A autora apresenta uma “radiografia” profunda do atual regime internacional de propriedade intelectual como fator que nega acesso dos países em desenvolvimento ao poder do conhecimento. Outros estudos parecem corroborar sua visão.

É o caso de CHANG (2002) que oferece uma rigorosa investigação de história econômica que demonstra, entre outras coisas, o quanto o regime internacional de propriedade intelectual surgido a partir do TRIPS representa um obstáculo ao desenvolvimento econômico de países em desenvolvimento.  O autor demonstra claramente que os países hoje desenvolvidos utilizaram-se no passado de um conjunto de políticas e instituições, hoje tidas como não recomendáveis (entre elas, a prática de pirataria e outras de desrespeito à propriedade intelectual) para alcançar seu atual estágio de desenvolvimento. Assim, as nações desenvolvidas estariam se valendo hoje do pretexto de recomendar políticas e instituições que deveriam ser seguidas por todos unicamente para dificultar o acesso dos países em desenvolvimento às políticas e instituições que elas implementaram no passado para poder alcançar o seu atual estágio de desenvolvimento econômico.[13]  Trata-se do célebre argumento de que os países desenvolvidos estariam “chutando a escada” dos países em desenvolvimento para que eles não cheguem ao topo.[14]

CORREA (2003, pp. 83-94) é outro autor igualmente crítico da natureza excludente que caracterizaria o atual regime internacional de propriedade intelectual. O autor alega que, antes do TRIPS, o chamado “sistema de propriedade intelectual” era flexível e permitia a transferência de tecnologia e investimentos diretos para os países em desenvolvimento. Após o TRIPS, o vínculo que se estabeleceu entre propriedade intelectual e comércio foi fundamental para que se elevassem bastante os níveis de proteção e para que se passasse a condenar práticas, antes toleradas, caracterizadas como pirataria e contrafação e que, em épocas passadas, foram fundamentais para que países outrora em desenvolvimento atingissem o patamar de desenvolvidos.

SELL (2003) concorda com o diagnóstico de que com a finalização da Rodada Uruguai do GATT e da assinatura do TRIPS, em 1994[15], ficou clara a natureza excludente do novo regime. Segundo a autora, o Acordo TRIPS teria introduzido uma “nova era” de ampliação global da regulação da propriedade intelectual baseada em conceitos de exclusão e proteção mais do que em disseminação e competição. A dramática expansão dos direitos de propriedade intelectual incorporada no Acordo TRIPS teria reduzido as opções disponíveis aos futuros industriais por meio do bloqueio da rota que os primeiros industriais seguiram. Ela teria aumentado o preço da informação e da tecnologia pela extensão dos privilégios monopolistas dos detentores de direitos e exigido dos Estados desempenhar um papel maior na sua defesa. Os países industrializados teriam construído muito do seu progresso econômico pela apropriação da propriedade intelectual de outrem; mas com o Acordo TRIPS esta opção teria sido bloqueada para os países de industrialização tardia. (2003, pp. 171-173).

As discussões dos autores acima expostos denotam o caráter claramente excludente do regime internacional de propriedade intelectual no que se refere à possibilidade de se ter acesso ao conhecimento e novas tecnologias sem contraprestações excessivamente onerosas aos seus titulares, majoritariamente localizados nos países mais desenvolvidos. A visão dos regimes internacionais como “jogos de coordenação”, resultado na aplicação dos postulados realistas aos estudos de regimes internacionais, nos auxilia a compreender do ponto de vista teórico as leituras até aqui apresentadas.

De acordo com LITTLE (2005), os institucionalistas liberais trabalham com a premissa de que os regimes são necessários para superar os problemas gerados pela estrutura anárquica do sistema internacional. Utilizando-se de analogias com a teoria microeconômica, segundo a qual falhas de mercado que levam a não provisão de bens públicos são resultado da necessidade de colaboração, os institucionalistas liberais entendem que os regimes são o instrumento recomendável para que esta atitude de colaboração se dê no ambiente internacional. Vale dizer: para os institucionalistas liberais, a anarquia não elimina a colaboração, só a torna mais difícil (LITTLE, 2005, p. 377-378).

Os institucionalistas liberais utilizam-se do dilema do prisioneiro para explicar porque é importante identificar e aprimorar algum mecanismo capaz de inibir a defecção entre atores que fazem parte de uma mesma interação estratégica e a estimulá-los a colaborar uns com os outros. Segundo os institucionalistas liberais, os atores muitas vezes se negam a adotar estratégias colaborativas porque esperam que os outros membros do sistema anárquico busquem estratégias competitivas (LITTLE, 2005, p. 378).

Já os realistas têm uma forma diferente de lidar com o que os liberais chamam de “falhas de mercado”. Para os realistas, o problema maior para os participantes de um regime não está associado com o problema da defecção de uma estratégia competitiva e sim com a possibilidade de falha na coordenação de estratégias. Segundo KRASNER (1993), os Estados que pretendem formar um regime enfrentam um problema de “coordenação” e não de colaboração. Ao invés do dilema do prisioneiro, KRASNER recorre a um outro jogo para explicar porque os regimes se formam: a “Batalha dos Sexos”.[16]

A ilustração da “Batalha dos Sexos” é a seguinte: um homem e uma mulher que acabam de se apaixonar resolvem viajar juntos nas férias. Ocorre que um pretende viajar para as montanhas enquanto o outro prefere ficar na cidade para visitar museus e galerias. Os dois preferem estar com o parceiro a viajar sozinhos nas férias. Assim, para alcançarem um compromisso, os casal deverá decidir por dividir sua semana de férias, passando um tempo na cidade e outro nas montanhas. O equilíbrio mais perfeito seria o de três dias e meio em cada local. Todas as combinações possíveis de divisão dos dias pelo casal representariam a fronteira de Pareto (numa extremidade estaria ficar todos os dias na montanha, e na outra todos os dias na cidade). Assim, o ótimo de Pareto não representa só um, mas vários resultados possíveis. Cabe aos envolvidos um trabalho de coordenação das diversas estratégias possíveis nesta fronteira.

Enfim, para KRASNER (1993) os regimes envolvem um problema de coordenação que pode ter conseqüências distributivas. Os Estados podem concordar quanto aos resultados mutuamente indesejados, mas discordam sobre o seu resultado favorito. Assim, “[…] os atores podem reconhecer que todos eles estariam em pior situação sem algum acordo, mas podem discordar sobre quais devem ser precisamente os termos do acordo” (KRASNER, 1993, p. 237).

A conclusão a que KRASNER chega é a de que a distribuição de capacidades é fundamental para determinar quem melhor trafega pela fronteira de Pareto. O autor acredita que, em muitos casos, uma abordagem orientada pelo poder pode dar conta melhor da formação e da existência de um regime do que uma abordagem que privilegia uma visão liberal segundo a qual a função dos regimes é apenas corrigir falhas de mercado e propiciar ganhos absolutos.  As opções dentro de um regime por muitas vezes podem ser constrangidas pela distribuição de capacidades em termos de poder entre os participantes. KRASNER afirma, inclusive, que o poder “[..] pode ser usado para determinar quem joga o jogo em primeiro lugar. […] O poder também pode ser usado para ditar as regras do jogo, a propósito, o jogador que se move primeiro pode ditar o resultado, provando que o outro jogador está convencido de que a estratégia do primeiro jogador é irrevocável” (1993, p. 238).[17]

LITTLE afirma que a leitura de KRASNER nos ajuda a compreender porque Estados podem se conformar a um regime enquanto desejam mudar seus princípios subjacentes (2005, p. 382), tal como ocorreu ao final da Rodada Uruguai do GATT, quando países em desenvolvimento como o Brasil aceitaram as disposições do TRIPS. Segundo o autor, os países em desenvolvimento pretendiam comercializar mais com os mais desenvolvidos, embora preferindo termos mais vantajosos. Mas exatamente em função do equilíbrio de poder continuar a favorecer estes últimos, haveria poucos sinais de novos princípios econômicos emergindo de forma mais favorável àqueles (LITTLE, 2005, p. 382).  Por isto, os países em desenvolvimento acabaram por aceitar os termos finais da Rodada Uruguai.

Enfim, o mérito da abordagem de Krasner, segundo LIMA (1996, p. 407), é demonstrar que os regimes estão relacionados também aos conflitos distributivos que emergem quando um regime relativamente assimétrico opera. As instituições internacionais quase sempre são criadas dentro de um contexto determinado pelo poder, compreendido não só do ponto de vista do controle sobre recursos materiais e militares, mas como controle ou monopólio sobre o conhecimento intelectual e a alta tecnologia. Em face dos conflitos distributivos que emergiram durante a Rodada Uruguai do GATT, a diplomacia de FHC conformou-se em aceitar e aderir ao regime internacional de propriedade intelectual na esperança de que conseguiria conferir credibilidade e legitimidade aos interesses brasileiros em outras áreas de negociação, como na do acesso dos produtos agrícolas brasileiros aos mercados europeu e norte-americano.[18] As esperanças, como sabemos, não se materializaram, visto que até hoje o Brasil vê-se na necessidade de recorrer com habitualidade ao órgão de solução de controvérsias da OMC para questionar os subsídios agrícolas norte-americanos e da União Européia. A partir do momento que foi ficando cada vez mais claro para o governo brasileiro que o retorno esperado não havia se concretizado, a política externa brasileira de propriedade intelectual ingressou num processo gradual de mudança, tornando-se cada vez mais crítica e engajada.

De fato, em 1997 o governo brasileiro lançou um programa de combate ao HIV/AIDS, que tornava obrigatória a distribuição de medicamentos anti-retrovirais aos portadores da doença. Para escapar dos monopólios das patentes das grandes corporações transnacionais farmacêuticas e diminuir os custos do programa, a Rede de Laboratórios Farmacêuticos Oficiais do Ministério da Saúde passou a produzir genéricos destes medicamentos, amparada pela Lei dos Genéricos (Lei n° 9.787, de 10 de fevereiro de 1997). O governo norte-americano, temendo que o Brasil fosse utilizar licenças compulsórias para os medicamentos contra o HIV/AIDS, passou a exercer forte pressão diplomática para que tal fato não ocorresse.[19] Fundamental, à época, foi a iniciativa do então Ministro da Saúde José Serra, de explicar que os medicamentos genéricos anti-retrovirais que eram produzidos localmente não afrontavam o estipulado no TRIPS, uma vez que haviam sido todos produzidos sob o advento do antigo Código de Propriedade Industrial (Lei n° 5.772/71) que não permitia o patenteamento de medicamentos (CEPALUNI, 2005, p. 79).

Em 09 de janeiro de 2001, o Brasil viu-se obrigado a enfrentar um pedido de abertura de painel no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC apresentado pelos Estados Unidos, que acusava o artigo 68 da Lei da Propriedade Industrial brasileira de violar as regras do Acordo TRIPS. Em 18 de maio, o Governo Brasileiro, agindo de forma destemida, levou proposta à Organização Mundial de Saúde – OMS para que o acesso a medicamentos para pacientes com AIDS fosse reconhecido como direito humano fundamental. Apesar das resistências da delegação dos Estados Unidos, que contestava a política brasileira na OMC, a proposta brasileira foi aprovada por unanimidade pelos 188 membros da Assembléia Geral da organização. Contribuiu bastante para o resultado as pressões da maioria dos países signatários da instituição, de organizações não-governamentais e de grupos de defesa dos direitos humanos e de portadores do vírus HIV/AIDS. Assim, um mês depois, em acordo celebrado em junho de 2001, o Governo dos Estados Unidos decidiu retirar a queixa que apresentara na OMC, ao passo que o Brasil se comprometeu a avisar caso resolvesse fornecer licenças compulsórias de patentes de medicamentos fabricados por empresas norte-americanas.[20] Finalmente, em novembro do mesmo ano, a “Declaração sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública” da IV Conferência de Doha reconheceu o direito de cada membro da OMC de conceder licenças compulsórias e de estabelecer parâmetros para a concessão das mesmas (CEPALUNI, 2005, pp. 81-82).

Apesar de ser necessário reconhecer o valor emblemático do embate diplomático travado pelo Brasil a partir de 1997 com os países desenvolvidos em torno da questão do acesso aos medicamentos anti-retrovirais de combate ao HIV/AIDS – especialmente se compararmos este momento com a postura de alinhamento quase acrítico ao regime, que se dera dois anos antes -, o fato é que a diplomacia do Governo FHC não logrou sistematizar um novo padrão de inserção do Brasil no regime internacional de propriedade intelectual. O episódio dos medicamentos contra a AIDS, apesar de relevante, representou um fato tópico, isolado, que pouco auxiliou o Brasil a buscar uma inserção geral mais positiva em todas as subáreas do regime. A tentativa desta inserção mais sistematizada só se tornou mais visível no governo seguinte, devido às reorientações de política externa que o caracterizaram e que repercutiram, na área temática da propriedade intelectual, na proposta de uma “Agenda para o Desenvolvimento” na OMPI. Significa dizer que a política externa do Governo Lula representa provavelmente o principal momento de inflexão em relação à opção de adesão ao regime internacional do Acordo TRIPS, no início do Governo FHC.

 

A POLÍTICA EXTERNA DE PROPRIEDADE INTELECTUAL DO GOVERNO LULA E A AGENDA DO DESENVOLVIMENTO

 

Autores como FERNANDES (2004), ALMEIDA (2004) e VIZENTINI (2005) nos auxiliam a identificar elementos de ruptura e de continuidade entre as estratégias e iniciativas de política externa dos Governos FHC e Lula. Analisar estes elementos nos auxilia a compreender como eles podem ter interferido nas mudanças no padrão de inserção do Brasil no regime internacional de propriedade intelectual.

O movimento inicial de Luis Fernandes é distinguir as duas dimensões do planejamento da política externa brasileira: a política de Estado e a política de Governo. Concebida como política de Estado, a política externa “reflete os interesses mais permanentes e consolidados do Estado brasileiro”, ao passo que a política externa como política de governo “reflete as prioridades, o estilo, a ênfase e o tom definidos por forças responsáveis pela direção do poder executivo nacional durante diferentes períodos” (FERNANDES, 2004, p. 88).

No que se refere à política externa como política de Estado, o autor afirma que existem diretrizes claras de continuidade que estão materializadas na consolidação do Itamaraty como um dos corpos diplomáticos mais profissionais e bem preparados do mundo. Princípios basilares inscritos na própria Carta Constitucional como os direitos humanos, a autodeterminação dos povos, a não intervenção, a igualdade entre os Estados, a resolução pacífica dos conflitos e a regulação da ordem mundial pela via multilateral constituem, segundo o autor, a espinha dorsal de nossa agenda externa, projetando uma visão de mundo que delimita a própria atuação governamental (FERNANDES, 2004, pp. 88-89).

Não obstante, no que se refere à política externa como política de governo, Fernandes aponta duas diferenças básicas na atuação internacional do Governo Lula em relação ao período FHC. A primeira delas seria a decisão de situar a defesa de nossa autonomia e de nossa liderança regional no marco dos processos de multipolarização em curso no mundo. Ao contrário do Governo FHC, que se orientou pela busca da “autonomia pela participação”, ou seja, pela compreensão de que as vias de ampliação das margens de autonomia do Brasil num “mundo globalizado” deveriam passar por uma maior aproximação com os pólos centrais de poder do sistema internacional[21], o Governo Lula se concentrou na consolidação de diversos pólos de poder capazes de compensar a política externa dos Estados Unidos, unilateral e intervencionista, e de resgatar o multilateralismo como princípio ordenador do âmbito internacional. Portanto, o Governo Lula se caracteriza pelo esforço em vincular seu papel de liderança a movimentos que tendem a descentralizar e a regular simultaneamente o poder no sistema internacional.  (FERNANDES. 2004, p. 89).

A segunda mudança significativa, realizada pela política externa do Governo Lula, em comparação com a de seu antecessor, representa a disposição, no âmbito dos diferentes processos de multipolarização em curso no mundo, de assumir os ônus do exercício de sua liderança na América do Sul, assentindo, inclusive, em discutir a consolidação institucional do Mercosul, ao contrário da posição até então da diplomacia brasileira de resistência à institucionalização (FERNANDES, 2004, pp. 89-90).  O autor cunha o termo “autonomia pela liderança” para se referir à atividade diplomática do Governo Lula, em contraste com a “autonomia pela participação” que caracterizou o Governo FHC e com a “autonomia pela distância” que foi traço característico da política externa brasileira durante boa parte do século XX (FERNANDES, 2004). [22]

Em linhas gerais, a abordagem de Paulo Roberto de Almeida se aproxima bastante da de Luis Fernandes. ALMEIDA (2004) afirma que o Governo Lula se caracteriza por um ativismo diplomático cujas iniciativas, embora possam ser consideradas, em grande parte, desdobramentos de ações iniciadas na administração anterior, se revestiram de novas roupagens e ênfases conceituais (ALMEIDA, 2004, p. 163).

O autor entende que, do ponto de vista da forma, a diplomacia do Governo Lula ostenta um ativismo exemplar, com um caráter dinâmico e “multipresencial” (ALMEIDA, 2004, p. 164). Apesar da centralidade da figura do Presidente na condução da política externa, ela não se equipara à concentração de poder decisório observada durante o Governo FHC, quando de fato foi exercida uma diplomacia presidencial e o Itamaraty foi esvaziado enquanto instância de tomada de decisões (VIZENTINI, 2005, p. 382). Com Lula, observa-se a importância assumida por outros interlocutores, como Samuel Pinheiro Guimarães, Secretário-Geral de Relações Exteriores do Itamaraty, o Chanceler Celso Amorim, e o Assessor Especial para Assuntos Internacionais da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, todos com autonomia decisória, em diversos temas. Sobre o último, VIGEVANI e CEPALUNI (2007, p. 1316) atentam para inovação que representou a nomeação de um não-diplomata para um cargo de tal importância. Pode-se dizer que, se em FHC, era exercida uma diplomacia presidencial, no Governo Lula temos uma diplomacia mais compartilhada.

Do ponto de vista do conteúdo, a diplomacia do Governo Lula apresenta, segundo ALMEIDA (2004, p. 165), uma postura mais afirmativa e enfática em torno da defesa da soberania nacional e dos interesses nacionais, assim como de buscas de alianças privilegiadas na dimensão sul-sul, o que não foi, em absoluto, uma estratégia de inserção internacional para o governo anterior.[23] Invariavelmente, a maioria dos analistas de política externa critica certa inibição e acanhamento da diplomacia de FHC, que teria impedido uma inserção mais ousada do Brasil nos regimes internacionais. O Governo FHC teria se “caracterizado por um multilateralismo moderado […] que evidenciou uma aceitação tácita do princípio dos “mais iguais”, isto é, a existência de grandes potências e de seu papel no sistema internacional”(ALMEIDA, 2004, p. 166).

É possível notar que a maior parte dos autores converge no sentido de apontar diferenças significativas entre as políticas externas dos Governos FHC e Lula. Contudo, não são poucos os que consideram o Governo Lula nada mais do que a continuidade do Governo FHC, principalmente em termos de condução da política macroeconômica.[24] Ainda que se admita uma certa procedência nestas críticas, no que tange especificamente ao plano multilateral da propriedade intelectual, a agenda de política externa brasileira aprofundou-se substancialmente a partir de 2004, com o lançamento da “Agenda do Desenvolvimento”, no âmbito da Organização Mundial de Propriedade Intelectual – OMPI.

Os objetivos da agenda apresentam coerência e harmonia totais com o perfil afirmativo e de engajamento crítico da diplomacia do Governo Lula. Apresentada originalmente à Assembléia Geral da OMPI, em 2004, por iniciativa de Brasil e Argentina, recebeu logo em seguida o apoio de um grupo de mais dez países que, somados aos dois primeiros, logo veio a se intitular “Grupo de Amigos do Desenvolvimento”.[25] A Agenda tem como um de seus propósitos implícitos o de resgatar, ao menos parcialmente, o papel da OMPI como lócus institucional per se das negociações internacionais de propriedade intelectual, em detrimento da posição de prestígio de que goza a OMC. Não de trata de uma vontade despropositada (e irreal) de esvaziar por completo este último organismo, mas somente de revitalizar aquele que tradicionalmente foi criado exclusivamente para tratar das questões relativas à propriedade intelectual. Pretende-se que a OMPI, coadunada com objetivos explicitados em sua carta constitutiva, possa enfim “promover a atividade intelectual criativa e […] facilitar a transferência de tecnologia para os países em desenvolvimento de forma a acelerar o desenvolvimento econômico, social e cultural” (PARANAGUÁ, 2005, p. 9).[26]

Explicitamente, o que a Agenda propõe é que o regime internacional de propriedade intelectual não pode ser um fim em si mesmo e que deve existir um equilíbrio entre os direitos e obrigações dos que produzem e dos que usufruem bens intangíveis, para poder aprimorar o acesso ao conhecimento e à tecnologia, de forma a trazer desenvolvimento social, cultural, econômico e tecnológico a todos, sempre medindo os custos e benefícios da proteção à propriedade intelectual em face do interesse público. O regime deve ser visto “como um meio de alcançar um desenvolvimento sustentável, auxiliando as necessidades socioeconômicas da sociedade, mais do que se usado para o enriquecimento de poucos” (PARANAGUÁ, 2005, p. 33). Entre algumas das medidas práticas recomendadas na Agenda está o aperfeiçoamento da assistência técnica prestada pela OMPI aos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos, a criação de um novo órgão encarregado de assegurar transferência de tecnologia àqueles países e o aumento da participação de organizações não-governamentais de interesse público no processo decisório da instituição, para torná-lo mais democrático (PARANAGUÁ, 2005, p. 35).

Rapidamente, surgiram resistências por parte dos países mais desenvolvidos à proposta da Agenda de flexibilização de determinadas proteções previstas no Acordo TRIPS para garantir maior acesso ao conhecimento, de democratização do processo decisório e de formação de uma agenda própria de desenvolvimento no marco da OMPI. Os Estados Unidos, por exemplo, argumentou que o tema do desenvolvimento pertencia à esfera de competência de outras agências das Nações Unidas, como a UNCTAD e que, portanto, a OMPI deveria continuar se concentrando apenas em promover a proteção à propriedade intelectual. Já a Suíça alegou que a sociedade civil já é suficientemente representada na organização, sendo desnecessário ampliar sua participação na tomada de decisões (PARANAGUÁ, 2005, pp. 37-39). 

Nos últimos três anos, o impasse tem marcado os rumos da “Agenda do Desenvolvimento” nas discussões da OMPI. Suas propostas continuam sendo objeto de incessantes debates, sem resultar em decisão relevante. Não é exagero afirmar que a clivagem “Norte-Sul” é hoje um traço característico da organização e a maior responsável pelas resistências que a Agenda encontra. Prova disto foi o resultado da última eleição para Diretor Geral da instituição, realizada em 13 de maio de 2008. Por um voto de diferença (42 x 41 votos), o advogado australiano Francis Gurry venceu o brasileiro José Graça Aranha, Presidente do INPI durante a Gestão FHC e atual diretor de registros da organização. Apesar do novo presidente ter declarado que reconhecia a importância de garantir que a “agenda de desenvolvimento” da OMPI realmente impulsione a capacidade de propriedade intelectual das nações mais pobres (EVANS & NEBEHAY, 2008), o fato é que a derrota da candidatura Graça Aranha foi percebido como um sinal de que ainda são muitos os obstáculos políticos que os países em desenvolvimento e menos desenvolvidos deverão enfrentar até que a implementação da Agenda possa se tornar realidade. Mesmo assim, não há como deixar de reconhecer que, ao introduzir a “Agenda do Desenvolvimento” no ambiente de negociação da OMPI, a diplomacia do Governo Lula conseguiu questionar de forma positiva os alicerces do regime internacional de propriedade intelectual do Acordo TRIPS, mesmo que carente de instrumentos mais persuasivos de inclusão da mesma no processo de tomada de decisões da organização.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Com este estudo, foi possível demonstrar que a trajetória do padrão de inserção do Brasil no regime internacional de propriedade intelectual sofreu modificações do Governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) para o Governo Lula. De um padrão de inserção subordinado, característico do primeiro mandato de FHC (1995-1998), em que o mais importante era apenas aderir aos regimes internacionais existentes e aos novos regimes propostos (o paradigma da “autonomia pela participação”), a inserção brasileira gradualmente assumiu um perfil mais crítico e descontente até se revestir de uma postura engajada no Governo Lula. O padrão engajado de inserção do Brasil no regime internacional de propriedade intelectual começou a ser moldado gradativamente no segundo mandato do Governo FHC, mas só se sistematizou no atual governo.

Do ponto de vista da agenda internacional, o perfil pró-ativo da política externa brasileira no campo da propriedade intelectual tem, no lançamento da “Agenda do Desenvolvimento”, seu ponto de inflexão recente mais relevante, comparativamente à posição brasileira nas negociações da Rodada Uruguai, que resultaram na criação do Acordo TRIPS. A proposta da Agenda consiste numa tentativa de buscar na “fronteira de Pareto” do regime internacional de propriedade intelectual as propostas de resolução de dilemas de coordenação mais interessantes aos países em desenvolvimento e aos menos desenvolvidos, considerando os constrangimentos estruturais impostos pelos Estados com mais recursos de poder. Entre os dilemas de coordenação mais relevantes estão propostas de democratização do processo decisório da OMPI e de flexibilização de determinadas regras do TRIPS, com vistas a facilitar para os países em desenvolvimento o acesso ao conhecimento e novas tecnologias.

A condução da área temática da propriedade intelectual na agenda de política externa brasileira é caracterizada pelo papel protagonista de um só ator (o Itamaraty), mas conta com a participação relevante de outras agências do Estado, como o Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI, na formulação de políticas. Futuros estudos deverão se dedicar a esmiuçar o efetivo grau de participação de agências governamentais no processo de tomada de decisões tradicionalmente centralizado no Ministério das Relações Exteriores. Com efeito, o INPI desenvolve ações de cooperação internacional no âmbito do Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual – GIPI, vinculado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio – MDIC (cenário doméstico), e com entidades congêneres de outros países (cenário externo) que merecem um olhar analítico detido, a fim de verificar qual é o verdadeiro grau de interferência desta importante agência governamental no processo decisório em política externa.

 

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[1] Doutorando e Mestre em Relações Internacionais pela PUC-RJ. Professor de Relações Internacionais da Universidade Estácio de Sá-RJ. Professor do Mestrado Profissional em Propriedade Intelectual e Inovação do INPI. Tecnologista em Propriedade Industrial do INPI, lotado na Diretoria de Marcas na função de Examinador de Marcas. Este artigo foi apresentado no marco do V Simpósio de Pós Graduandos em Ciência Política da USP, realizado entre os dias 11 e 13 de agosto de 2008.

[2] Os direitos de propriedade intelectual decorrem do exercício da criação intelectual humana e são formados pelos direitos da propriedade industrial (marcas, patentes, indicações geográficas, contratos de transferência de tecnologia, registro de softwares), juntamente com os direitos advindos da propriedade literária, científica e artística (os direitos de autor). Discute-se hoje em dia novas formas de proteção como a da biotecnologia e de conhecimentos tradicionais, como os das comunidades ribeirinhas da Amazônia.

[3] Acordo TRIPS – Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights, também conhecido pela sigla ADPIC – Acordo sobre Comércio Referente aos Direitos de Propriedade Intelectual.

[4] Publicado em 1977, Power and Interdependence foi sem dúvida o livro mais importante do período.

[5] Apesar do conceito de “regime internacional” de Krasner ser o mais reconhecido, Gilpin (2001) afirma que John Ruggie foi o primeiro autor a utilizar o termo “regime” na literatura de economia política interacional.

[6] Cf. Hasenclever et al (1997, p. 12).

[7] Ver a crítica de Hasenclever et al (1997, p. 12).

[8] Segundo Salomón (2002: 13), as premissas assumidas foram as seguintes: I) a de que os Estados são os principais atores internacionais, ainda que não os únicos; II) a de que os Estados atuam racionalmente, ainda que não a partir de uma informação completa, nem com preferências imutáveis; e, III) a de que os Estados buscam poder e influência, ainda que nem sempre nos mesmos termos (em diferentes condições sistêmicas, os Estados definem seus interesses de maneira diferente). Sobre as presunções comuns e concorrentes entre o realismo e institucionalismo neoliberal, ver também Little (2005, p. 371).

[9] Uma excelente síntese das categorizações ou tipologias presentes nos estudos de Krasner (1983) e de Hasenclever et al (1997) se encontra em Cepaluni (2005, p. 60-65).

[10] Um dos exemplos que a autora utiliza para fundamentar a crítica dos regimes como tendo uma “visão estática” é a da área de segurança. Tomando como referência os trinta cinco anos anteriores ao do artigo (1983), Strange afirma que o regime internacional de segurança (questionando, inclusive, a possibilidade de chamá-lo assim) não foi derivado de nenhum arranjo multilateral. Ele teria se sustentado no balanço de poder entre as superpotências. (Strange, 1983, pp. 346-347).

[11] Segundo Cepaluni (2005, p. 88), o ótimo de Pareto é qualquer situação em que o bem-estar de pelo menos um dos participantes pode aumentar sem trazer prejuízo aos demais.

[12] Devemos destacar as negociações que resultaram, à época, na celebração de dois dos principais tratados internacionais na área da propriedade intelectual: a CUP – Convenção Única de Paris (sobre propriedade industrial) e a Convenção de Berna (sobre Direitos de Autor).

[13] Chang (2002) demonstra que obstáculos ao reconhecimento dos direitos de patente, a espionagem industrial e o uso indevido de marcas foram práticas corrente que auxiliaram a transferir capital e tecnologia e a promover o desenvolvimento econômico entre muitos países da Europa e os Estados Unidos durante os séculos XVIII e XIX e, também nos países do Sudeste Asiático, no pós-Segunda Guerra Mundial.

[14] A expressão “chutar a escada”, na realidade, foi cunhada pelo economista alemão Frierich List, autor da obra The National System of Political Economy, escrita no século XIX.

[15] O TRIPS é apresentado sob perspectiva histórica por Gandelman (2004, pp. 55-110).

[16] Ver Krasner (1993) e Little (2005).

[17] A atitude agressiva da diplomacia norte-americana durante a Rodada Uruguai sobre os temas de propriedade intelectual representou forte poder intimidador sobre missões dos países em desenvolvimento, certamente não tão preparadas, do ponto de vista técnico, não obstante a qualificação de alguns negociadores, como a dos diplomatas brasileiros.

[18] A este respeito, ver Lima (2001) e Santos (2004).

[19] A Lei de Propriedade Industrial brasileira permite o fornecimento de licenças compulsórias para a produção local de medicamentos (artigos 68 e 71). Com efeito, o artigo 68 determina que “o titular ficará sujeito a ter a patente licenciada compulsoriamente se exercer os direitos dela decorrentes de forma abusiva, ou por meio dela praticar abuso de poder econômico”. Já o artigo 71 determina que “nos casos de emergência nacional ou interesse público [..] poderá ser concedida [..] licença compulsória temporária e não exclusiva, para patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular. Cf. CEPALUNI (2005, p. 78).

[20] Para CEPALUNI (2005, p. 81), a vitória brasileira não foi incondicional, uma vez que o Brasil abriu mão de sua soberania interna ao estabelecer um acordo em que se comprometeu a avisar aos Estados Unidos todas as vezes que fosse utilizar o artigo 68 com o objetivo de fornecer licenças compulsórias para patentes pertencentes a companhias norte-americanas. O acordo bilateral foi celebrado out-of-court, ou seja, fora do manto institucional da OMC.

[21] FERNANDES afirma, inclusive, que nos anos 90, a diplomacia de FHC implicou no retrocesso do Brasil numa série de contenciosos que se opunham aos Estados Unidos e diferentes foros multilaterais (FERNANDES, 2004, p. 89). A decisão de adesão ao TRIPS ocorreu neste contexto.

[22] Em direção oposta, SUANO e ARAGÃO (2006), ao analisar histórica e politicamente a política externa do Brasil para a América do Sul, afirmam que a inserção brasileira no cenário político continental representa apenas um comportamento reativo, associado a um discurso que não condiz com o seu comportamento, significando apenas um exercício de liderança virtual. Os autores não enxergam pontos de inflexão do Governo Lula em relação ao FHC no que se refere à política externa para a América do Sul. Ao contrário, afiram que o Governo Lula “manteve continuidade com o governo anterior, repetindo grande parte dos mesmos anseios e objetivos de curto prazo” (SUANO e ARAGÃO, 2006, p. 151).

[23] Paulo Nogueira Batista Jr., por exemplo, enxerga no espírito renovado do nacionalismo do Governo Lula uma força positiva para que o Brasil se torne um país que concilie um regime político aberto com interesse sistemático e até agressivo dos interesses nacionais (BATISTA JR, 2005, p. XVII).

[24] Visões críticas à política econômica do Governo Lula se encontram presentes na coletânea “Adeus ao Desenvolvimento: a opção do Governo Lula”, publicada em 2005 e organizada por João Antonio de Paula. A coletânea conta com os artigos “Governo Lula: uma opção neoliberal”, de autoria de João Machado Borges Neto, e “FHC, Lula e a Desconstrução da Esquerda”, de Fernando J. Cardim de Carvalho. Para FILGUEIRA & GONÇALVES, por exemplo, “não houve transformações qualitativas no padrão de inserção da economia brasileira” (FILGUEIRAS & GONÇALVES, 2007, pp. 83-88) inclusive no que concerne a condução da sua política industrial. CARNEIRO (2006, p. 30) também afirma que o Governo Lula não conseguiu estabelecer um novo modelo de crescimento, nem concretizar uma política industrial. 

[25] Os doze países são: Argentina, Bolívia, Brasil, Cuba, República Dominicana, Equador, Egito, Irã, Quênia, Peru, Serra Leoa, África do Sul, Tanzânia e Venezuela.

 

[26] Tradução livre do autor de texto original em inglês. As demais citações diretas do texto seguem o mesmo padrão.

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